domingo, 3 de agosto de 2014

A Última

Eu canto o vazio em mim
Esse abismo sem fim
Das profundezas da alma
Segurando brasa na palma
Cerro o punho e grito
É um infinito
Uma proporção desmedida
Já tem gosto de despedida
E dói. Muito.
O grito tem mesmo esse intuito
De chocar a pele e o ser
De causar ou curar o sofrer
E esta é tão somente
A última poesia
O último dia.
Minha despedida não-tão sagaz
Um ato desprezível a mais
Ainda que compreensível
É como queimar um fusível
Troca-se o que esgotado
Muda de cor e de lado
Triste, mas necessário
Enquanto que outro, mais temerário
Toma o lugar que era meu
Descartável, o gladiador no coliseu
Todos aplaudem, César esqueceu
E o leão faminto, com voracidade
Dá fim à vida e à mocidade
No todo, tudo é tristeza
E meu dom, servido à mesa
Não tem propósito, serventia
Ou jeito real de poesia
Pois o poeta que aqui escreve
Sabe que a mente da leve
Dos que escutam a ladainha
Não compreende uma linha
Do que ecoo aos quatro ventos
Sem um pingo de sentimento
Sem aproveitar qualquer encanto
Eu me julgo pássaro sem canto
E poesia só me traz fome
Não fama, nome, sobrenome
É só um poeta que some
Ninguém dará falta
Nenhum jornal ou pauta
Para contar o que fiz
Sou um fracasso nacional
E minha vida que por um triz
Não é uma decadência total
E não julgo fazer feliz
Quem quer que esteja comigo
Amante ou amigo
Ou meu próprio umbigo
Eu só tenho essa verdade
Nada mais que essa verdade
Mas quem realmente ler o final
Verá que o fracasso hoje vem
Pois a coragem nunca vem
E eu vivo mais um dia
Em chagas, em prantos
Em nome da poesia
Esta, a derradeira
O resto da baboseira
Vai ficar dentro da mente
E atualmente
Dentro da minha mente, francamente
Num mundo de doenças
Fracassos e selvageria
Como escrever poesia?
Como não ser zombaria?
E já que não fisicamente
Ao menos mato na mente
O que alimenta meu coração
E escrever novamente
Só trabalho ou lição
Peço perdão ao amor
Por desistir tão facilmente
Do que era minha paixão.
Mas poesia não faço mais
Eu só quero um pouco de paz
Na mente que já morreu.